A bebida compromete quase todos os órgãos e depois o sistema nervoso periférico, afetando a memória e a cognição
Ao contrário do que se pensa, o álcool é mais prejudicial à saúde do que outras drogas, como crack ou heroína. Recente pesquisa britânica, divulgada na revista científica Lancet, mostrou que, quando computados os danos às pessoas em volta do usuário, no topo das substâncias mais nocivas estão, na ordem, o álcool, a heroína e o crack. O consumo de bebidas alcoólicas está diretamente relacionado, por exemplo, aos acidentes de trânsito, uma das principais causas de óbitos entre jovens do sexo masculino, atualmente.
O meio social interfere na atitude de beber e também de utilizar outras drogas. Cerca de 35% dos adolescentes que fazem uso dessas substâncias são por interferência da companhia, de acordo com o conselheiro do Conselho Estadual de Políticas Anti-Drogas e coordenador de formação da Pastoral da Sobriedade, Rogério Melo. Além disso, é cultural beber, como afirma a psiquiatra e diretora clínica do Hospital de Saúde Mental de Messejana (HSMM), Ana Jeceline Pedrosa Tavares. As pessoas chegam a ser isoladas da sociedade quando não consomem álcool. “Em alguns momentos já fui marginalizado porque disse que não bebia”, relata o ex-alcoólatra, A.A. O fácil acesso agrava a situação. “É possível encontrar bebida em qualquer lugar, a qualquer hora”, diz a diretora.
Além disso, a substância está mais relacionada com a criminalidade do que outras drogas e é porta de entrada para elas. “Ninguém pula de paraquedas no crack, normalmente se começa pelo álcool”, diz Rogério Melo. Mais de 90% dos alcoólicos começaram dentro de casa, de acordo com dados do Alcoólicos Anônimos (AA). Para a psiquiatra, o alerta começa quando o ato de beber passa a atrapalhar a vida das pessoas.
Foi o que aconteceu com A.A. Ele começou a consumir álcool aos 15 anos e conta que gostou do efeito da bebida porque tirava sua timidez. “A diferença é que os amigos bebiam, dançavam, namoravam e no outro dia iam à praia. Já eu não conseguia porque estava de ressaca”.
A.A. bebeu por 16 anos. Os prejuízos foram muitos. Parou os estudos e trabalhava de terça a sexta até o meio dia. “Cheguei a tomar 68 chopes em um dia, mas não enxergava o problema. A vida só tinha um sentido para mim: beber”. Ele conta que ingressou no AA e depois disso sua vida mudou. “Voltei a estudar, passei no vestibular e hoje tenho uma vida normal”.
Mas os prejuízos não param por aí. Os danos biológicos são ainda maiores. A bebida compromete quase todos os órgãos e depois o sistema nervoso periférico, atingindo a memória, a cognição e a coordenação motora. “O álcool destrói a flora intestinal e compromete o aparelho circulatório, causando inchaço dos pés.
Progressivamente, o resultado é a morte”, revela o psiquiatra e professor da Universidade Federal do Ceará (UFC), Antônio Mourão Cavalcante.
O óbito é, muitas vezes, proveniente de cirrose hepática, que é a substituição de células normais do fígado - órgão mais afetado pela bebida - por tecido fibroso, semelhante a cicatrizes, o que pode levar à falência hepática. Já o alcoolismo, que diz respeito à dependência, é uma doença crônica e se dá em fases, de acordo com Jeceline. “Existe o período da abstinência, o do delirium tremens, que é uma psicose causada pela abstinência ou suspensão do uso do entorpecente e é o que mais preocupa, e o uso nocivo”, enumera. Os efeitos psicológicos incluem agressividade, mudança de humor súbita e depressão.
Dependência
O processo de dependência é lento, além disso, é mais difícil o alcoólico procurar ajuda porque ele não consegue admitir que tem a doença. De dez pessoas que começam a beber, certamente uma se tornará alcoólatra, de acordo com o AA. Fora isso é mais complicado abandonar o álcool do que outras drogas e a recaída é mais comum. “Se a pessoa não tem dinheiro para comprar pedra (crack), consome álcool porque alivia a necessidade da droga”, explica a psiquiatra Jeceline.
Mas nem todo mundo desenvolve a dependência, já que se trata de uma doença genética, como informa a diretora do HSMM. Quando se chega ao vício, a pessoa perde o autocontrole e passa a tolerar grandes doses de bebida. Filhos de dependentes têm quatro vezes mais chances de serem também.
O consumo por mulheres vem aumentando nos últimos anos. Segundo dados de 2010 da Pastoral da Sobriedade, o álcool é a droga com maior número de dependentes no Brasil. São 24,8%, contra 6% do crack e 5,1% da cocaína. Já no Ceará, o crack lidera com 30,9%. O álcool exerce influência sobre 7,4% da população, em 2010.
R.V. começou a beber aos 11 anos. Ele percebeu que tinha um problema com o álcool quando se identificou com histórias de outras pessoas que dormiam na sarjeta. “Já cheguei a passar a noite no cimento e no sofá”. A partir daí, R.V. viu que poderia perder sua família e resolveu frequentar as reuniões do AA. “O emprego não perdi porque era funcionário público, mas quando parei de beber recebi benefícios. Hoje, vejo a felicidade dos meus filhos”.
FALTAM CAMPANHAS
Políticas públicas enfatizam o combate às drogas ilícitas
As dificuldades para enfrentar o alcoolismo, problema já considerado como de saúde pública em todo o País, são muitas. Em Fortaleza, os locais de recuperação ainda são insuficientes para a demanda. O maior número de usuários do serviço municipal de saúde é de dependentes do álcool, como informa a coordenadora do Colegiado de Saúde Mental do Município, Rane Félix. Entretanto, existem apenas 20 leitos no Hospital de Saúde Mental de Messejana (HSMM) para desintoxicação. Já os Centros de Atenção Psicossocial (Caps), que oferecem tratamento ambulatorial, não conseguem atender o grande volume de pessoas.
Não fossem as instituições filantrópicas, que têm um papel crucial, a situação estaria ainda pior. A Pastoral da Sobriedade é uma delas. Hoje, são cerca de 250 agentes que atuam em 12 grupos de autoajuda para pessoas com problemas com álcool. De 20 a 25 usuários são atendidas em cada reunião. Além disso, há um trabalho de orientação aos jovens.
Os Alcoólicos Anônimos (AA) são uma organização que reúne dependentes da bebida alcoólica para que possam alcançar a sobriedade, por meio da vontade própria. No estado doCeará, são 430 grupos, dos quais 260 estão em Fortaleza.
De acordo com Rane Félix, a Capital oferece seis Caps AD e dois infantis que atendem adolescentes e jovens com dependência. “Os Caps reduziram as internações em hospitais psiquiátricos”, revela.
Mas medidas estão sendo tomadas para melhorar a Saúde Mental no Município, como informa a coordenadora. “Está em andamento a implantação de 12 leitos de desintoxicação na Santa Casa de Misericórdia de Fortaleza”. Conforme o supervisor do Núcleo de Saúde Mental da Secretaria da Saúde do Ceará (Sesa), Marcelo Brandt, estão sendo criadas 40 Casas de Acolhimento Transitório (CAT) para todo o Brasil e o Governo Federal vai dar apoio financeiro a projetos de utilização de leitos de acolhimento por usuários de crack e outras drogas em Comunidades Terapêuticas. O Ceará será beneficiado.
Intersetorial
No entanto, o atendimento tem de ser intersetorial, que inclua não só o tratamento, mas também a oferta de trabalho, emprego, geração de renda, esporte, lazer e assistência social, como acrescenta Brandt.
O problema é que a ênfase das políticas públicas de combate e as campanhas não estão direcionada ao álcool, mas para outras drogas que costumam matar menos, como destaca o integrante do Conselho Estadual de Políticas Anti-Drogas e coordenador de formação da Pastoral da Sobriedade, Rogério Melo. “Até porque a bebida é lícita e, portanto, alvo da publicidade. Como destaca o conselheiro, é preciso haver campanhas contra o uso da bebida alcoólica, assim como as do cigarro ”.
Outra dificuldade é a inexistência de dados específicos sobre o consumo de drogas. Isso dificulta o combate
Fique por Dentro
Legislação
A lei das Drogas no Brasil, que teve sua primeira versão em 1976, foi modificada em 2006. São crimes tanto o consumo quanto a comercialização, embora em graus bem diferentes. A punição ao usuário é mais branda do que a aplicada ao traficante. Ao primeiro, a lei imputa três tipos de pena: advertência, prestação de serviços à comunidade e medida educativa. Já a quem produz ou comercializa drogas, a lei atribui pena de cinco a 15 anos de reclusão e pagamento de multa de R$ 500,00 a R$ 1.500,00. Mas a legislação peca por não estar associada às políticas de prevenção, diz o advogado Gustavo Sampaio Brasilino de Freitas. Atualmente, é consenso que tais substâncias causam dependência e podem ter efeito devastador sobre a saúde dos usuários. No entanto, ainda há muitas divergências sobre como abordar a questão. A solução, para o advogado, deve passar pela educação que vai reduzir ou até inibir o consumo.
OPINIÃO DO ESPECIALISTA
Banalizar é o problema
Em meio a uma propagação maior de outras drogas - como a cocaína, a heroína e o crack -, a bebida alcoólica acabou sendo banalizada. Como é socialmente admitido, o álcool é minimizado. O alcoolismo é um problema gravíssimo. A dependência é um processo lento e é tão sério quanto no caso de outras drogas. Ainda não se tem a ideia exata dos fatores que provocam o vício. Mas sabemos que os fatores sociais, os psicológicos e os genéticos estão envolvidos.
Muitas vezes é mais difícil deixar o álcool do que outras drogas, porque se cria uma relação funcional com a bebida, que passa a fazer parte do dia a dia das pessoas. Socialmente, os efeitos do álcool são omitidos, mas são muitos. Os biológicos são o comprometimento de quase todos os órgãos, como o esôfago, o estômago, o intestino e o fígado, além do comprometimento do sistema circulatório.
O estado de embriaguez é o problema do alcoolismo porque traz o hiperativismo, a agressividade, a falta de controle e a mudança súbita de humor. As ações de violência, inclusive no trânsito, partem desse estado. Na realidade, esse é o problema imediato, mas a longo prazo as consequências não são menos desastrosas.
É preciso lembrar de outras drogas lícitas, como o cigarro e os remédios (psicotrópicos e os emagrecedores), que também trazem prejuízos devastadores. Quanto à legislação, a proibição das bebidas alcoólicas já existe para menores. Mas a fiscalização é inócua. O fácil acesso às bebidas é um grave problema. Até em casa a família permite que crianças, adolescentes e jovens consumam álcool. É algo que já faz parte da cultura.
Para o tratamento, nem sempre há necessidade de hospitalização. As internações são necessárias no momento inicial e em alguns tipos de pacientes. É preciso focar na prevenção. O melhor tratamento é a noção de rede de apoio que inclui desde a orientação até o tratamento em si. O problema é o que poder público não tem interesse de repassar recursos para a rede.
Fonte: Diario do Nordeste
Antônio Mourão Cavalcante
Psiquiatra e professor da UFC
Lina Moscoso
Repórter