Fascinado pela ciência, o homem elevou-a até ocupar o lugar do sagrado.
Por Alfonso Aguiló
Por Alfonso Aguiló
O homem encontra a Deus por trás de cada porta que a ciência consegue abrir. (Albert Einstein)
Para os que acreditam, Deus está no princípio. Para os cientistas, Deus está no final de todas as suas reflexões. (Max Planck)
O físico alemão Otto Hahn, inventor da fissão do átomo de urânio, estava internado num campo de concentração inglês, junto com outros eminentes cientistas. Quando, em agosto de 1945, recebeu a notícia de que Hiroshima tinha sido arrasada por uma bomba atômica, sentiu um profundíssimo sentimento de culpa. As suas pesquisas sobre a fissão do urânio tinham acabado por ser utilizadas para produzir um massacre terrível. Foi tal a sua angústia que tentou abrir as veias nos arames farpados que cercavam o campo.
Depois que os seus companheiros conseguiram dissuadi-lo, o velho professor fez-lhes, desolado, a seguinte confissão: “Acabo de perceber que a minha vida não tem mais sentido. Pesquisei pelo puro desejo de revelar a verdade das coisas, e todo o meu saber científico acaba de se converter num enorme poder aniquilador”.
A experiência pessoal de Otto Hahn foi, na realidade, a experiência amarga de toda uma época. Uma aflitiva impressão de fracasso invadiu os espíritos de todos os que tinham lutado com tanta tenacidade por levar o conhecimento científico à máxima altura possível, convencidos de fazer com isso um grande bem à humanidade. Tinham trabalhado penosamente com a profunda convicção de que o aumento do saber teórico e o incremento da felicidade humana estavam inequivocamente vinculados. Acreditavam que fomentar o conhecimento científico teria sempre um valor positivo, que significaria automaticamente cotas mais elevadas de felicidade e de dignidade. Pensaram que se tratava de um bem inquestionável, e que, portanto, se traduziria indubitavelmente em bem-estar e perfeição para o homem.
Mas esse entusiasmo plurissecular, que já tinha aberto fendas nas trincheiras de Verdun1, ruiu estrepitosamente com os horrores da Segunda Guerra Mundial. O terrível poder destruidor das armas nucleares, os intensíssimos bombardeios da população civil, o extermínio sistemático e profundamente cruel de toda uma raça e um saldo de cinqüenta milhões de mortos puseram tragicamente de manifesto que o saber teórico pode traduzir-se num saber técnico, e este, por sua vez, num amplo poder sobre a realidade, mas, por desgraça, todo esse domínio não leva automaticamente a uma maior felicidade dos homens se aqueles que detêm esse poder não possuem uma consciência ética proporcional à sua responsabilidade.
Após séculos de febril incremento do saber científico, a ideia de que o progresso humano é sempre contínuo e não pode haver retrocesso revelou-se uma farsa irritante. O ideal do domínio científico e a consequente forma de humanismo desfizeram-se em pedaços ao entrarem em colisão com a obstinada realidade da história. Era patente que o futuro não devia caracterizar-se por essa ingênua crença no progresso como princípio motor de uma civilização, mas que era preciso alicerçá-lo em valores mais altos e seguros.
HISTÓRIA DE UMA DESILUSÃO
O psiquiatra austríaco Viktor Frankl, depois da sua experiência pessoal em diversos campos de concentração, chegou à conclusão de que não foram os ministérios nazistas de Berlim os verdadeiros responsáveis por aquelas atrocidades, mas a filosofia niilista do século XIX. Se o homem é um simples produto de uma natureza mutável, um simples macaco evoluído, então, da mesma forma que o macaco pode ser enjaulado num zoológico, o homem pode ser encarcerado num campo de extermínio. Se o homem é um simples animal, ainda que extraordinariamente adestrado, e fazemos sabonetes com gordura animal, por que não fazê-los com gordura humana?
O filósofo Edmund Husserl, esclarecido pela falência do mito do eterno progresso por ocasião da Segunda Guerra mundial – na qual viu, entre outras coisas, aquela racionalização perfeita da matança em massa de milhões de inocentes –, percebeu claramente que a ciência, por força do seu método, não pode ser um princípio motor da vida humana. “O mundo da objetividade científica – escreveu – é um mundo fechado e inóspito. A forma pela qual o homem moderno, na segunda metade do século XIX, se deixou determinar totalmente pelas ciências positivas e cegar pela prosperidade a elas devida, significou pôr de lado as questões decisivas para uma humanidade autêntica. As ciências que só contemplam meros fatos fazem com que os homens só enxerguem meros fatos”. Procurar o conhecimento científico objetivo das coisas é lícito e fecundo. Mas considerar esse modo de conhecer como modelo, como a única forma rigorosa de conhecimento, é uma parcialidade inaceitável, já que empobrece enormemente o homem.
A Ilustração – o Iluminismo – pretendia alcançar o ideal renascentista que sonhava entregar o homem a si mesmo, torná-lo livre, permitindo-lhe viver sob o império exclusivo da razão. A esperança de que o homem atingiria a felicidade para sempre num mundo já dominado e sem segredos, por meio de uma ciência que tudo conheceria e tudo poderia, veio a ser um sonho que nunca se alcançaria e que o horror gigantesco das duas Guerras Mundiais converteu em algo pior que um pesadelo. O domínio da realidade escapava ao molde estreito do pensamento racionalista. E o perigo não derivava da ciência em si, mas dessa mentalidade que levava a considerar que só se pode conhecer aquilo que é mensurável, controlável, verificável, e a desprezar os aspectos da realidade que resistem a esse tipo de controle e cálculo. Essa pretensão de domínio sem limites deixava o homem numa situação de desamparo. Logo se viu que a ciência, que tinha dominado com o seu prestígio o Século das Luzes, não podia, por si só, plenificar a vida do homem. Não era a sua missão. A ciência não fala de valores, de sentido, de metas nem de fins, e o ser humano precisa de tudo isso para preservar a sua dignidade e ser feliz.
O otimismo ilustrado previra horizontes paradisíacos, mas a utopia científica mostrou como nunca a sua impotência.
Não há dúvida de que o progresso científico foi grande e que esse desenvolvimento é uma coisa boa, ou, pelo menos, não tem por que ser má. Mas, hoje em dia, muito poucos acreditam que tudo isso seja a panacéia, que possa fazer algo mais do que transferir a inquietação de uns temas para outros. O domínio das coisas é muito elevado, mas necessita de um humanismo válido que lhe dê sentido. Porque, do contrário, pode embriagar-se com os seus próprios êxitos e crescer em direções aberrantes para a dignidade do homem.
A técnica permite desenvolver meios de comunicação extremamente poderosos, rápidos, atraentes, sugestivos…, mas esses meios podem ser uma arma de primeira grandeza para manipular as consciências, moldar as vontades e os sentimentos dos homens. A ciência precisa de alguns limites para a sua pretensão de soberania. Toda a grande conquista traz consigo uma inevitável ambivalência: um avanço num aspecto e um retrocesso em outro, talvez não menos valioso. O aumento de poder não corre sempre paralelamente ao aumento do domínio do homem sobre esse poder. A ciência não pode abandonar-se à sua própria dinâmica, mas deve ser regulada por uma instância externa que a oriente e lhe dê sentido.
O PROGRESSO CIENTÍFICO IMPLICA UM DECLIVE RELIGIOSO?
A Idade Moderna começou por cultivar insistentemente as questões de método. Bacon, Descartes e Spinoza, por exemplo, concentraram a sua filosofia em torno da busca de um método rigoroso que lhes permitisse chegar à certeza e assentar a vida sobre convicções sólidas, inquebrantáveis, inexpugnáveis.
Como as ciências avançam sobre dados seguros e conferidos, verificados pela experiência, foram surgindo pensadores convencidos de que, sempre que a ciência descobria um segredo, a religião dava um passo atrás.
Parecia-lhes que o progresso da ciência reduzia inexoravelmente o domínio do religioso, cada dia mais confinado. Em contraposição ao que consideravam o crédulo espírito medieval, o homem moderno haveria de encontrar, apenas com a força da sua razão, um método sem fendas. E o grande modelo do pensamento autêntico era, para eles, o saber matemático.
Se se trabalha com a devida lógica, articulando bem os diversos passos do raciocínio – afirmavam –, chega-se em matemática a conclusões apodícticas, inquestionáveis. A ordem no raciocínio torna-se a chave do pensamento e do conhecimento retos. E essa ordem é estabelecida pela razão, pois a razão é o grande privilégio do homem. Por esse caminho – acabavam por concluir –, o homem basta-se a si mesmo, já que a razão lhe oferece recursos de sobra para descobrir as leis da realidade e conseguir um rápido domínio sobre ela.
Mas de novo a passagem do tempo veio a mostrar como esse domínio só é possível em termos quantitativos, naquilo que pode submeter-se a cálculo e medida. Mas o espírito escapa ao método matemático e à lógica cartesiana. Ao possibilitar a opção livre, o espírito torna possíveis muitas coisas que denunciam a insuficiência do modelo racionalista.
Poderiam citar-se muitos exemplos. Um dos mais característicos é a tentativa racionalista de explicar a inteligência humana. É difícil saber exatamente o que é o pensamento, mas, se eu reduzo o problema a uma questão de neurônios, posso conseguir uma tranquilizadora impressão de exatidão: 1.350 gramas de cérebro humano, constituído por 100.000 milhões de neurônios, cada um dos quais forma entre 1.000 e 10.000 sinapses e recebe a informação que lhe chega dos olhos através de 1.000.000 de axônios acumulados no nervo ótico. Por sua vez, cada célula viva pode ser explicada pela química orgânica…. Deste modo, posso pretender explicar a inteligência num plano biológico, a biologia em termos de processos químicos e a química em forma de matemática.
Pois bem, qualquer leitor medianamente crítico perguntar-se-á o que têm a ver as porcentagens de carbono e hidrogênio, os neurônios e toda a matemática associada a esses processos, com algo tão humano e tão pouco matemático como conversar, entender uma piada, captar um olhar de carinho ou compreender o sentido da justiça.
A ciência moderna, com as suas descobertas maravilhosas, com as suas leis de uma exatidão assombrosa, oferece a tentação – um empenho que se deu em Descartes com uma força irresistível – de querer conhecer toda a realidade com uma exatidão matemática. Mas costuma-se esquecer algo essencial: que a matemática é exata à custa de considerar unicamente os aspectos quantificáveis da realidade. E reduzir toda a realidade ao quantificável é uma notável simplificação, é um reducionismo.
Poderíamos replicar como aquele velho professor universitário, quando um aluno fazia alguma afirmação reducionista: “Isso é como se eu lhe perguntasse o que é esta mesa, e você me respondesse: cento e cinqüenta quilos”. As grandezas matemáticas prestaram e prestarão um grande serviço à ciência, e à humanidade no seu conjunto, mas sempre prestaram um péssimo serviço quando se quis empregá-las de um modo exclusivista.
A totalidade do real nunca poderá ser expressa só em cifras, porque as cifras expressam unicamente grandezas e a grandeza é apenas uma parte da realidade. E não é questão de dar mais números ou com mais decimais. Por muitos ou muito exatos que sejam, oferecem sempre um conhecimento notoriamente insuficiente. Você pesa 70 quilos, mas não é 70 quilos. E mede 1,83 metros, mas não é 1,83 metros. As duas medidas são exatas, mas você é muito mais que uma soma exata de centímetros e quilos. As suas dimensões mais genuínas não são quantificáveis: não podem ser determinadas numericamente as suas responsabilidades, a sua liberdade real, a sua capacidade de amar, a sua simpatia por tal pessoa ou a sua vontade de ser feliz.
Não querer reconhecer uma realidade alegando que não pode ser medida experimentalmente seria proceder mais ou menos como um químico que se negasse a admitir as propriedades especiais dos corpos radioativos sob o pretexto de que não obedecem às mesmas leis que explicam o que acontece com os outros corpos já conhecidos.
Acima da ciência há outra face da realidade: a mais importante, e também a mais interessante do ser humano, aquela em que aparecem aspectos tão pouco quantificáveis como, por exemplo, os sentimentos – não é possível pesá-los, mas nada pesa mais do que eles na vida.
Um pensamento ou um sentimento não podem honestamente ser qualificados como materiais. Não têm cor, sabor ou extensão, e escapam a qualquer instrumento que sirva para medir propriedades físicas. “Os fenômenos mentais – afirma John Eccles, Prêmio Nobel de Neurocirurgia – transcendem claramente os fenômenos da fisiologia e da bioquímica”.
“A ciência, apesar dos seus progressos incríveis – escreve o médico e pensador Gregorio Marañón –, não pode nem poderá nunca explicar tudo. Cada vez ganhará mais terreno no campo daquilo que hoje parece inexplicável. Mas os limites fronteiriços do saber, por muito longe que cheguem, terão sempre pela frente um infinito mundo de mistério”.
A FÉ DESAPARECERÁ QUANDO A SOCIEDADE AMADURECER?
Em um de seus livros, López Quintás conta que um dia, ao entardecer, depois de visitar a catedral de Notre-Dame, enquanto vagueava pela velha Paris, deparou, sem querer, com um pequeno edifício abandonado, com as suas sórdidas janelas cruzadas por sarrafos de madeira. Aquela construção quase em ruínas era o famoso “Templo da Nova Religião da Ciência” que o filósofo francês Augusto Comte tinha erigido fazia século e meio.
O contraste foi tão brusco como expressivo. O templo com o qual se pretendera dar culto ao progresso científico estava em ruínas. A velha catedral, pelo contrário, irradiava as suas melhores galas, como na sua brilhante época medieval. A música combinava nela com a harmonia das linhas arquitetônicas, com as belas palavras dos oradores, com o magnífico esplendor litúrgico que num dia de Natal, anos atrás, emocionara o grande poeta Claudel, até levá-lo à conversão.
A história daquele templo esquecido está aparentada com a da Ilustração, que no seu tempo se ergueu com o sonho de “despojar o homem dos grilhões irracionais das crenças e conhecimentos supersticiosos baseados na autoridade e nos costumes”. O pensamento ilustrado da Enciclopédia considerava os conhecimentos religiosos como “simples e ingênuas explicações sobre a vida dadas pelo homem não-científico”. Na sua aversão à fé, uma multidão de pensadores deleitava-se em atribuir a origem mais baixa possível ao sentimento religioso. Concebiam os nossos antepassados como “seres perpetuamente atemorizados, empenhados em conjurar as forças hostis do céu e da terra mediante práticas irracionais”. Viam a Deus como um simples “produto do medo das civilizações primitivas, num tempo em que esses espíritos atrasados ainda acreditavam em fábulas”.
Sentiam-se chamados a “libertar toda a humanidade daquele lamentável estado de ignorância”. A fé acabaria por desaparecer à medida que a sociedade fosse amadurecendo. “A deusa Razão encostaria num canto essa ignorância, iluminaria o caminho e dirigiria com mão segura os destinos da humanidade”.
Pensavam que a tendência que levava a buscar nos deuses uma razão de existir pertencia a um estágio primitivo da vida humana, destinado a dar passagem ao pensamento filosófico e, mais adiante, a ceder o lugar ao conhecimento científico, que conferiria ao homem a primazia absoluta no Universo e o situaria na maioridade.
A teoria de Comte sobre a evolução humana através dos três estados – religiosidade, pensamento filosófico e conhecimento científico – gozou na sua época de grande aceitação e em sua honra foi erigido aquele templo dedicado à “Nova Religião da Ciência”.
– Não é curioso que a ciência adquirisse essa faceta religiosa?
Foi efetivamente um curioso fenômeno de substituição. Fascinado pela ciência, o homem elevou-a até ocupar o lugar do sagrado. Mas não era um simples conflito entre a ciência e a fé. Com efeito, entronizar uma bonita mocinha parisiense na catedral de Notre-Dame – como fizeram durante a Revolução Francesa –, dando-lhe o título de “Deusa Razão”, não parece que fizesse parte das ciências experimentais. Por trás de tudo aquilo latejava o empenho ateu de proclamar a salvação da humanidade por si mesma, e o advento de uma sociedade iluminada unicamente pela razão humana.
Passaram-se menos de dois séculos, e o estado de abandono em que se encontra hoje aquele templo laico é talvez um fiel reflexo do abandono da concepção do homem que tanta força teve na sua época. Aquela ilusão segundo a qual o advento da era científica permitiria eliminar o mal do mundo acabou por ser um doloroso engano. As suas hipóteses acabaram por estar mais impregnadas de ingenuidade do que a que eles atribuíam às épocas históricas anteriores.
A CIÊNCIA PODE EXPLICAR TUDO ?
Um olhar sobre o progresso científico com um pouco de perspectiva histórica deixa-nos espantados com a rapidez com que as máquinas são ultrapassadas e vão parar nos museus. Muitas afirmações das revistas científicas atuais provavelmente serão motivo de riso ou de assombro para as gerações futuras, talvez em menos tempo ainda.
A história da ciência adverte-nos, com teimosa insistência, sobre um fato irrefutável: poucas teorias científicas conseguem manter-se em pé, mesmo que por poucos séculos; muitas vezes, só por alguns anos; e em alguns casos, menos ainda. A maioria das afirmações da ciência vão sendo substituídas, uma atrás da outra, pouco a pouco, por outras explicações mais complexas e mais fundamentadas dessa mesma realidade. Eram hipóteses tidas como certas durante uma série de anos, ou de séculos, e que um dia se descobre que estão superadas. Umas vezes, são englobadas dentro de teorias mais completas, das quais a antiga hipótese é um corolário ou um simples caso particular. Outras, ficaram obsoletas e desapareceram por completo do âmbito científico. A postura própria da ciência experimental deve ser, portanto, extremamente cautelosa nas suas afirmações.
“Uma cilada perniciosa – escrevia John Eccles pouco depois de ter recebido o Prêmio Nobel pelas suas pesquisas em neurocirurgia – surge da pretensão de alguns cientistas, mesmo eminentes, de que a ciência não demorará a proporcionar uma explicação completa de todos os fenômenos do mundo natural e de todas as nossas experiências subjetivas. É uma pretensão extravagante e falsa, que foi qualificada ironicamente por Popper2 como «materialismo promissório».
“É importante reconhecer que, mesmo que um cientista possa manifestar essa pretensão, não se comportaria como cientista, mas como um profeta mascarado de cientista. Isso seria cientificismo, não ciência, embora impressione fortemente os profanos que pensam que a ciência produz de forma incontroversa a verdade.
“O cientista não deve pensar que possui um conhecimento certo de toda a verdade. O máximo que nós, os cientistas, podemos fazer é chegar mais perto de um entendimento verdadeiro dos fenômenos naturais mediante a eliminação de erros em nossas hipóteses. É da maior importância para os cientistas que apareçam perante o público como o que realmente são: humildes buscadores da verdade”.
Em contrapartida, a imodéstia costuma caminhar a par da ignorância. A auto-suficiência com que alguns falam reflete uma atitude muito pouco científica, pois os cientistas sensatos nunca conferem a categoria de dogma às suas hipóteses. O cientificismo orgulhoso prestou sempre um péssimo serviço ao rigor da verdadeira ciência.
CIENTISTAS QUE PONTIFICAM SOBRE FILOSOFIA?
Os cientistas sensatos – além de se vigiarem a si mesmos para não se converterem em personagens dogmáticos – procuram basear sempre as suas afirmações científicas em comprovações que sigam com rigor o método científico. Cuidam, pois, de não impor como científicas afirmações que, no fundo, se apoiam propriamente em razões de ordem filosófica.
– Penso que, se são cientistas, o que dizem estará baseado no método científico, que é aquele que conhecem, não é assim?
Certamente, a maioria dos cientistas comporta-se desse modo, e com grande honestidade. Mas há alguns que são menos honestos nas suas afirmações, embora, às vezes – para desprestígio da verdadeira ciência –, sejam mais conhecidos nos meios de comunicação. São figuras que têm uma certa habilidade para meter-se furtivamente no vizinho campo da filosofia. E isso não nos deve estranhar, pois já dizia Einstein que todo o pesquisador científico é uma espécie de metafísico disfarçado, por mais positivista que se considere.
– Mas têm todo o direito do mundo de filosofar, se assim o desejam, não é?
Sem dúvida. Nem as ciências especulativas nem as experimentais entendem de exclusivismos. Estão abertas a todos. Mas em todas se deve exigir que se cumpram as regras e o método próprios da ciência em que se está trabalhando. Não é legítimo que se pretenda impor especulações filosóficas em nome do método científico.
Se alguém, como cientista experimental, faz uma afirmação científica, deve fornecer dados empíricos que avalizem essa afirmação. Se a afirmação não é experimental, mas especulativa, deve fornecer as razões necessárias de acordo com as normas de um bom trabalho filosófico. Mas não goza de nenhum privilégio nesse campo, por mais que seja um bom cientista. O que não seria lícito é que fizesse conjecturas derivadas da razão e as apresentasse como demonstradas experimentalmente. E isso é o que fazem alguns, que, dando um pulo sigiloso, se metem de roldão em campo alheio, e falam dali querendo fazer-nos ver que falam de outro lugar.
– Quer dizer, é como um pretexto para fugir ao método científico.
Exato. E não é que o façam todos nem continuamente. Fazem-no apenas alguns e em algumas ocasiões, e, às vezes, sem que eles mesmos o percebam. O problema é que costumam mover-se aos tropeções no campo da filosofia e passeiam por ela como um rinoceronte numa loja de porcelanas, fazendo conjecturas filosóficas bastante curiosas.
– De qualquer maneira, também não é mau fazer conjecturas de vez em quando. Não havemos de estar sempre limitados ao estritamente demonstrado.
Com certeza. Mas então é preciso distinguir bem entre as conjecturas e as afirmações da ciência. Assim como, por exemplo, por um princípio ético elementar os profissionais dos meios de comunicação devem distinguir o que é propriamente a notícia do que é a sua opinião sobre essa notícia, os cientistas têm o dever de fazer também essa distinção entre o que comprovaram cientificamente e o que é mera especulação pessoal.
DEMONSTRAR QUE DEUS NÃO EXISTE?
Narrando a história da sua conversão, o professor de Oxford C.S. Lewis explicava como foi que percebeu, num momento concreto da sua vida, que o seu racionalismo ateu da juventude se baseava inevitavelmente no que ele considerava como as grandes descobertas das ciências. E o que os cientistas apresentavam como certo, ele o assumia sem conceder o menor espaço à dúvida.
Pouco a pouco, à medida que ia amadurecendo o seu pensamento, espatifava-se, uma e outra vez, contra um escolho que não conseguia superar. Ele não era cientista. Tinha, portanto, que aceitar essas descobertas por confiança, por autoridade…, como se fossem, em última análise, dogmas de fé científicos. E isso ia frontalmente contra o seu racionalismo.
Relatava-o passados anos, espantando-se com a ingenuidade da sua juventude. Sem quase saber por quê, vira-se envolvido numa credulidade que agora lhe parecia humilhante. Sempre tinha acreditado, às cegas, em praticamente tudo o que aparecesse escrito em letra impressa e assinado por um cientista. “Na época, ainda não fazia a menor ideia – dizia – da quantidade de tolices que existem no mundo escritas e impressas”. Agora parecia-lhe que essa candura juvenil o tinha arrastado a uma inocente aceitação rendida de um dogmatismo mais forte que aquele do qual estava fugindo. Os cientistas, aos olhos do grande público, têm em seu favor uma grande vantagem: o enorme complexo de inferioridade que o homem comum sente perante a ciência.
– E se a ciência demonstrar um dia que Deus não existe? Porque muita gente pensa que chegará um dia em que a ciência conseguirá prescindir do que chamam a hipótese de Deus, forjada nos obscuros séculos da ignorância…
É um velho temor que surge, às vezes, mesmo entre os que creem, excitado pela força divulgadora do ateísmo científico. No entanto, o temor do crente perante a ciência não faz nenhum sentido. Se demonstrar com seriedade a existência de Deus pode ser uma tarefa trabalhosa para a filosofia, demonstrar a sua inexistência é para a ciência uma tarefa impossível.
O objeto da ciência é só o observável e o mensurável, e Deus não é nem uma coisa nem outra. Para demonstrar que Deus não existe, seria preciso, como vimos, que a ciência descobrisse um primeiro elemento que não tivesse causa, que existisse por si mesmo, e cuja presença explicasse tudo o mais sem deixar nada de fora. E se pudesse descobri-lo – o que não conseguirá, porque está fora do seu âmbito de conhecimento –, seria precisamente isso que nós chamamos Deus.
Robert Jastrow, diretor do Goddard Institute of Space Studies, da NASA, e grande conhecedor dos últimos avanços científicos relacionados com a origem do Universo, dizia: “Para o cientista que passou a vida acreditando no ilimitado poder da razão, a história da ciência desemboca num pesadelo. Escalou a montanha da ignorância, e está a ponto de conquistar o cume mais alto. E quando está subindo o último penhasco, saem para lhe dar as boas-vindas um monte de teólogos que estavam sentados lá em cima faz muitos séculos”.
CIENTISTAS QUE CREEM ?
– Alguns estão persuadidos de que a ciência e a fé são incompatíveis. Dizem, como Laplace, que “Deus é uma hipótese da qual não têm nenhuma necessidade”. E afirmam que são precisamente os cientistas quem costuma negar que se possa conhecer a Deus.
É verdade que alguns cientistas pensam assim. No entanto, muitíssimos outros – de indubitável e reconhecido prestígio – não hesitam em afirmar que creem, e não lhes parece que a fé seja de maneira nenhuma um empecilho para as suas pesquisas; pelo contrário, afirmam que a verdadeira ciência, quanto mais progride, mais descobre a Deus. Os conflitos entre a fé e a razão foram sempre causados pela ignorância dos defensores de um ou de outro lado.
O próprio Albert Einstein, por exemplo, autor da teoria da relatividade, afirmava que “a religião sem a ciência estaria cega, e a ciência sem a religião estaria coxa”.
Newton afirmava que “há um ser inteligente e poderoso… que governa todas as coisas não como a alma do mundo, mas como Senhor do Universo, e, por causa do seu domínio, é chamado Senhor Deus, Pantocrator”.
O famoso prêmio Nobel alemão Werner K. Heisenberg, um dos principais criadores da Mecânica Quântica e formulador do conhecido Princípio da Indeterminação que leva o seu nome, ao passar por Madrid em 1969 afirmava: “Creio que Deus existe e que dEle procede tudo. A ordem e a harmonia das partículas atômicas têm que ter sido impostas por alguém”.
Max Planck, outro alemão ganhador do prêmio Nobel, que formulou a teoria dos quanta, é ainda mais explícito: “Em todos os lugares e por mais longe que dirijamos o nosso olhar, não somente não encontramos nenhuma contradição entre a religião e a ciência, mas precisamente um pleno acordo nos pontos decisivos”.
Von Braun, que conseguiu levar o primeiro homem à Lua, assegurava que “quanto mais compreendemos a complexidade da estrutura atômica, a natureza da vida ou a estrutura das galáxias, mais encontramos novas razões para nos enchermos de admiração perante os esplendores da Criação divina”.
O físico britânico Paul Davies assegura que a ciência não pode responder às questões últimas, e que tem de existir algum plano superior capaz de explicar a vida humana. Para Davies, “é totalmente inviável atribuir a existência do homem ao simples jogo acidental de forças cegas da natureza: a espantosa racionalidade da natureza – com um grau verdadeiramente incrível de organização em diferentes níveis que se entrecruzam e complementam – não pode ser fruto de simples acasos”.
Alexis Carrel, prêmio Nobel de Medicina, inicialmente um positivista incrédulo, mas convertido mais tarde ao catolicismo, foi testemunha direta em Lourdes de uma cura instantânea e inexplicável, e dizia: “Pouco espírito de observação e muitas teorias levam ao erro. Muita observação e poucas teorias levam à verdade”.
A multiplicação deste tipo de testemunhos tão qualificados acabou por provocar uma reviravolta contra essa mentalidade de agnosticismo cientificista. É como se os agnósticos tivessem subestimado o poder da inteligência humana para chegar a Deus através da ciência3. Um editorial da revista Time comentava com espanto essa mudança dentro do mundo científico: “Através de uma silenciosa revolução no pensamento e na argumentação – uma revolução impensável faz vinte anos –, é como se Deus estivesse preparando a sua volta”.
A RAZÃO PRECISA DA FÉ?
O combate que o homem trava contra o mal excede infinitamente os meios da razão e da ciência. É o que demonstram fatos tão atuais como o racismo, a droga ou o álcool. Ou como todos esses terríveis crimes cometidos por totalitarismos ateus sistemáticos e pretensamente científicos ao longo do século XX: desde o genocídio nazista de Hitler até o de Pol Pot no Camboja, passando pelos do leninismo, do stalinismo ou do maoísmo.
O pior é que a maior parte desses crimes em massa foram cometidos em nome de teorias que, na sua época, receberam o aplauso de milhões de pessoas. Foram autênticos infernos fabricados por homens que procuravam um mundo perfeito que se bastasse a si mesmo e já não tivesse necessidade de Deus.
E assim como, lendo Lênin, se podia notar que os direitos do indivíduo não iam ser respeitados num sistema comunista, do mesmo modo, estudando as premissas da Ilustração, viu-se claramente que a Modernidade não atenderia às necessidades globais do ser humano. Não basta a razão para que uma sociedade seja justa, solidária e equilibrada. Para que haja equilíbrio na pessoa e na sociedade, é preciso atender, juntamente com a razão, à vontade e à sensibilidade. A pessoa e a sociedade devem ter por objetivo procurar o bem, a verdade e a beleza; e isso significa falar de vontade, inteligência e sentimentos; e, por sua vez, de ética, de ciência e de arte. Quando se idolatra um método da inteligência, como é a razão, sem elevar à sua altura a ética e a estética, desequilibram-se o indivíduo e a sociedade. Esse foi o fracasso da Ilustração.
Fracassou por ter pensado que da razão deriva automaticamente a ética, coisa que se demonstrou falsa ao ser confrontada com a realidade. A razão não pode ser salva pela razão. Isso seria ilusório. Esses crimes demonstraram o que o homem pode chegar a fazer. E vimos como a razão não os impediu.
Os ilustrados pensavam que, mostrando ao homem o que é racional, este o adotaria, e a razão seria suficiente para organizar a sociedade. Mas não foi assim. Não basta proclamar o que é racional para que os homens o pratiquem.
O comportamento humano está cheio de sombras e de matizes alheios à razão, que desembestam cada qual por sua conta movendo as molas da vontade e do coração. Reconhecer os perigos que a razão encerra – afirma Jean-Marie Lustiger – é salvar a sua honra. Conceber a razão como a grande soberana, independente do bem que o homem deve procurar, é mais ou menos como pôr-se nas mãos de um computador: é um instrumento muito capaz, processa grande quantidade de dados que toma do exterior, todo o seu desenvolvimento é perfeitamente lógico, mas alguém tem de garantir que está bem programado. A verdadeira fé é um guia insubstituível, pois a razão pode extraviar-se.
Não quero, com isto, menosprezar a razão, antes pelo contrário. A razão é uma das mais nobres capacidades que distinguem a espécie humana, e alegra-nos ver os seus triunfos, bem como as conquistas da ciência e a sua luta por construir um mundo melhor. Mas convém nunca esquecer a limitação humana, e igualmente a ordem natural imposta por Deus, que permite ao homem preservar a sua dignidade e evitar muitos erros.
A história está cheia de cadáveres ideológicos, e ninguém acha estranho encontrá-los perfeitamente alinhados quando olha para trás com a disposição de aprender. E, entre eles, espalhados ao longo dos séculos, pode-se ver toda uma legião de profetas que foram anunciando – sobretudo nos últimos duzentos anos – o próximo e definitivo desaparecimento da religião e da Igreja.
No entanto, a história mostra que são precisamente aqueles que, com tanta paixão, lançam essas condenações e essas profecias os que desaparecem uns após outros, enquanto a Igreja continua adiante depois de dois mil anos, e a religiosidade continua a ser uma constante em todas as civilizações de todos os tempos.
A Igreja, que presenciou catástrofes que varreram impérios inteiros, testemunha pela sua mera subsistência a força que palpita nela. “Os povos passam – observava Napoleão –, os tronos e as dinastias desmoronam-se, mas a Igreja permanece”. É uma realidade que leva a pensar que o fato religioso faz parte da natureza do homem, e que a Igreja está animada de um espírito que não é de origem humana.
Para os que acreditam, Deus está no princípio. Para os cientistas, Deus está no final de todas as suas reflexões. (Max Planck)
O físico alemão Otto Hahn, inventor da fissão do átomo de urânio, estava internado num campo de concentração inglês, junto com outros eminentes cientistas. Quando, em agosto de 1945, recebeu a notícia de que Hiroshima tinha sido arrasada por uma bomba atômica, sentiu um profundíssimo sentimento de culpa. As suas pesquisas sobre a fissão do urânio tinham acabado por ser utilizadas para produzir um massacre terrível. Foi tal a sua angústia que tentou abrir as veias nos arames farpados que cercavam o campo.
Depois que os seus companheiros conseguiram dissuadi-lo, o velho professor fez-lhes, desolado, a seguinte confissão: “Acabo de perceber que a minha vida não tem mais sentido. Pesquisei pelo puro desejo de revelar a verdade das coisas, e todo o meu saber científico acaba de se converter num enorme poder aniquilador”.
A experiência pessoal de Otto Hahn foi, na realidade, a experiência amarga de toda uma época. Uma aflitiva impressão de fracasso invadiu os espíritos de todos os que tinham lutado com tanta tenacidade por levar o conhecimento científico à máxima altura possível, convencidos de fazer com isso um grande bem à humanidade. Tinham trabalhado penosamente com a profunda convicção de que o aumento do saber teórico e o incremento da felicidade humana estavam inequivocamente vinculados. Acreditavam que fomentar o conhecimento científico teria sempre um valor positivo, que significaria automaticamente cotas mais elevadas de felicidade e de dignidade. Pensaram que se tratava de um bem inquestionável, e que, portanto, se traduziria indubitavelmente em bem-estar e perfeição para o homem.
Mas esse entusiasmo plurissecular, que já tinha aberto fendas nas trincheiras de Verdun1, ruiu estrepitosamente com os horrores da Segunda Guerra Mundial. O terrível poder destruidor das armas nucleares, os intensíssimos bombardeios da população civil, o extermínio sistemático e profundamente cruel de toda uma raça e um saldo de cinqüenta milhões de mortos puseram tragicamente de manifesto que o saber teórico pode traduzir-se num saber técnico, e este, por sua vez, num amplo poder sobre a realidade, mas, por desgraça, todo esse domínio não leva automaticamente a uma maior felicidade dos homens se aqueles que detêm esse poder não possuem uma consciência ética proporcional à sua responsabilidade.
Após séculos de febril incremento do saber científico, a ideia de que o progresso humano é sempre contínuo e não pode haver retrocesso revelou-se uma farsa irritante. O ideal do domínio científico e a consequente forma de humanismo desfizeram-se em pedaços ao entrarem em colisão com a obstinada realidade da história. Era patente que o futuro não devia caracterizar-se por essa ingênua crença no progresso como princípio motor de uma civilização, mas que era preciso alicerçá-lo em valores mais altos e seguros.
HISTÓRIA DE UMA DESILUSÃO
O psiquiatra austríaco Viktor Frankl, depois da sua experiência pessoal em diversos campos de concentração, chegou à conclusão de que não foram os ministérios nazistas de Berlim os verdadeiros responsáveis por aquelas atrocidades, mas a filosofia niilista do século XIX. Se o homem é um simples produto de uma natureza mutável, um simples macaco evoluído, então, da mesma forma que o macaco pode ser enjaulado num zoológico, o homem pode ser encarcerado num campo de extermínio. Se o homem é um simples animal, ainda que extraordinariamente adestrado, e fazemos sabonetes com gordura animal, por que não fazê-los com gordura humana?
O filósofo Edmund Husserl, esclarecido pela falência do mito do eterno progresso por ocasião da Segunda Guerra mundial – na qual viu, entre outras coisas, aquela racionalização perfeita da matança em massa de milhões de inocentes –, percebeu claramente que a ciência, por força do seu método, não pode ser um princípio motor da vida humana. “O mundo da objetividade científica – escreveu – é um mundo fechado e inóspito. A forma pela qual o homem moderno, na segunda metade do século XIX, se deixou determinar totalmente pelas ciências positivas e cegar pela prosperidade a elas devida, significou pôr de lado as questões decisivas para uma humanidade autêntica. As ciências que só contemplam meros fatos fazem com que os homens só enxerguem meros fatos”. Procurar o conhecimento científico objetivo das coisas é lícito e fecundo. Mas considerar esse modo de conhecer como modelo, como a única forma rigorosa de conhecimento, é uma parcialidade inaceitável, já que empobrece enormemente o homem.
A Ilustração – o Iluminismo – pretendia alcançar o ideal renascentista que sonhava entregar o homem a si mesmo, torná-lo livre, permitindo-lhe viver sob o império exclusivo da razão. A esperança de que o homem atingiria a felicidade para sempre num mundo já dominado e sem segredos, por meio de uma ciência que tudo conheceria e tudo poderia, veio a ser um sonho que nunca se alcançaria e que o horror gigantesco das duas Guerras Mundiais converteu em algo pior que um pesadelo. O domínio da realidade escapava ao molde estreito do pensamento racionalista. E o perigo não derivava da ciência em si, mas dessa mentalidade que levava a considerar que só se pode conhecer aquilo que é mensurável, controlável, verificável, e a desprezar os aspectos da realidade que resistem a esse tipo de controle e cálculo. Essa pretensão de domínio sem limites deixava o homem numa situação de desamparo. Logo se viu que a ciência, que tinha dominado com o seu prestígio o Século das Luzes, não podia, por si só, plenificar a vida do homem. Não era a sua missão. A ciência não fala de valores, de sentido, de metas nem de fins, e o ser humano precisa de tudo isso para preservar a sua dignidade e ser feliz.
O otimismo ilustrado previra horizontes paradisíacos, mas a utopia científica mostrou como nunca a sua impotência.
Não há dúvida de que o progresso científico foi grande e que esse desenvolvimento é uma coisa boa, ou, pelo menos, não tem por que ser má. Mas, hoje em dia, muito poucos acreditam que tudo isso seja a panacéia, que possa fazer algo mais do que transferir a inquietação de uns temas para outros. O domínio das coisas é muito elevado, mas necessita de um humanismo válido que lhe dê sentido. Porque, do contrário, pode embriagar-se com os seus próprios êxitos e crescer em direções aberrantes para a dignidade do homem.
A técnica permite desenvolver meios de comunicação extremamente poderosos, rápidos, atraentes, sugestivos…, mas esses meios podem ser uma arma de primeira grandeza para manipular as consciências, moldar as vontades e os sentimentos dos homens. A ciência precisa de alguns limites para a sua pretensão de soberania. Toda a grande conquista traz consigo uma inevitável ambivalência: um avanço num aspecto e um retrocesso em outro, talvez não menos valioso. O aumento de poder não corre sempre paralelamente ao aumento do domínio do homem sobre esse poder. A ciência não pode abandonar-se à sua própria dinâmica, mas deve ser regulada por uma instância externa que a oriente e lhe dê sentido.
O PROGRESSO CIENTÍFICO IMPLICA UM DECLIVE RELIGIOSO?
A Idade Moderna começou por cultivar insistentemente as questões de método. Bacon, Descartes e Spinoza, por exemplo, concentraram a sua filosofia em torno da busca de um método rigoroso que lhes permitisse chegar à certeza e assentar a vida sobre convicções sólidas, inquebrantáveis, inexpugnáveis.
Como as ciências avançam sobre dados seguros e conferidos, verificados pela experiência, foram surgindo pensadores convencidos de que, sempre que a ciência descobria um segredo, a religião dava um passo atrás.
Parecia-lhes que o progresso da ciência reduzia inexoravelmente o domínio do religioso, cada dia mais confinado. Em contraposição ao que consideravam o crédulo espírito medieval, o homem moderno haveria de encontrar, apenas com a força da sua razão, um método sem fendas. E o grande modelo do pensamento autêntico era, para eles, o saber matemático.
Se se trabalha com a devida lógica, articulando bem os diversos passos do raciocínio – afirmavam –, chega-se em matemática a conclusões apodícticas, inquestionáveis. A ordem no raciocínio torna-se a chave do pensamento e do conhecimento retos. E essa ordem é estabelecida pela razão, pois a razão é o grande privilégio do homem. Por esse caminho – acabavam por concluir –, o homem basta-se a si mesmo, já que a razão lhe oferece recursos de sobra para descobrir as leis da realidade e conseguir um rápido domínio sobre ela.
Mas de novo a passagem do tempo veio a mostrar como esse domínio só é possível em termos quantitativos, naquilo que pode submeter-se a cálculo e medida. Mas o espírito escapa ao método matemático e à lógica cartesiana. Ao possibilitar a opção livre, o espírito torna possíveis muitas coisas que denunciam a insuficiência do modelo racionalista.
Poderiam citar-se muitos exemplos. Um dos mais característicos é a tentativa racionalista de explicar a inteligência humana. É difícil saber exatamente o que é o pensamento, mas, se eu reduzo o problema a uma questão de neurônios, posso conseguir uma tranquilizadora impressão de exatidão: 1.350 gramas de cérebro humano, constituído por 100.000 milhões de neurônios, cada um dos quais forma entre 1.000 e 10.000 sinapses e recebe a informação que lhe chega dos olhos através de 1.000.000 de axônios acumulados no nervo ótico. Por sua vez, cada célula viva pode ser explicada pela química orgânica…. Deste modo, posso pretender explicar a inteligência num plano biológico, a biologia em termos de processos químicos e a química em forma de matemática.
Pois bem, qualquer leitor medianamente crítico perguntar-se-á o que têm a ver as porcentagens de carbono e hidrogênio, os neurônios e toda a matemática associada a esses processos, com algo tão humano e tão pouco matemático como conversar, entender uma piada, captar um olhar de carinho ou compreender o sentido da justiça.
A ciência moderna, com as suas descobertas maravilhosas, com as suas leis de uma exatidão assombrosa, oferece a tentação – um empenho que se deu em Descartes com uma força irresistível – de querer conhecer toda a realidade com uma exatidão matemática. Mas costuma-se esquecer algo essencial: que a matemática é exata à custa de considerar unicamente os aspectos quantificáveis da realidade. E reduzir toda a realidade ao quantificável é uma notável simplificação, é um reducionismo.
Poderíamos replicar como aquele velho professor universitário, quando um aluno fazia alguma afirmação reducionista: “Isso é como se eu lhe perguntasse o que é esta mesa, e você me respondesse: cento e cinqüenta quilos”. As grandezas matemáticas prestaram e prestarão um grande serviço à ciência, e à humanidade no seu conjunto, mas sempre prestaram um péssimo serviço quando se quis empregá-las de um modo exclusivista.
A totalidade do real nunca poderá ser expressa só em cifras, porque as cifras expressam unicamente grandezas e a grandeza é apenas uma parte da realidade. E não é questão de dar mais números ou com mais decimais. Por muitos ou muito exatos que sejam, oferecem sempre um conhecimento notoriamente insuficiente. Você pesa 70 quilos, mas não é 70 quilos. E mede 1,83 metros, mas não é 1,83 metros. As duas medidas são exatas, mas você é muito mais que uma soma exata de centímetros e quilos. As suas dimensões mais genuínas não são quantificáveis: não podem ser determinadas numericamente as suas responsabilidades, a sua liberdade real, a sua capacidade de amar, a sua simpatia por tal pessoa ou a sua vontade de ser feliz.
Não querer reconhecer uma realidade alegando que não pode ser medida experimentalmente seria proceder mais ou menos como um químico que se negasse a admitir as propriedades especiais dos corpos radioativos sob o pretexto de que não obedecem às mesmas leis que explicam o que acontece com os outros corpos já conhecidos.
Acima da ciência há outra face da realidade: a mais importante, e também a mais interessante do ser humano, aquela em que aparecem aspectos tão pouco quantificáveis como, por exemplo, os sentimentos – não é possível pesá-los, mas nada pesa mais do que eles na vida.
Um pensamento ou um sentimento não podem honestamente ser qualificados como materiais. Não têm cor, sabor ou extensão, e escapam a qualquer instrumento que sirva para medir propriedades físicas. “Os fenômenos mentais – afirma John Eccles, Prêmio Nobel de Neurocirurgia – transcendem claramente os fenômenos da fisiologia e da bioquímica”.
“A ciência, apesar dos seus progressos incríveis – escreve o médico e pensador Gregorio Marañón –, não pode nem poderá nunca explicar tudo. Cada vez ganhará mais terreno no campo daquilo que hoje parece inexplicável. Mas os limites fronteiriços do saber, por muito longe que cheguem, terão sempre pela frente um infinito mundo de mistério”.
A FÉ DESAPARECERÁ QUANDO A SOCIEDADE AMADURECER?
Em um de seus livros, López Quintás conta que um dia, ao entardecer, depois de visitar a catedral de Notre-Dame, enquanto vagueava pela velha Paris, deparou, sem querer, com um pequeno edifício abandonado, com as suas sórdidas janelas cruzadas por sarrafos de madeira. Aquela construção quase em ruínas era o famoso “Templo da Nova Religião da Ciência” que o filósofo francês Augusto Comte tinha erigido fazia século e meio.
O contraste foi tão brusco como expressivo. O templo com o qual se pretendera dar culto ao progresso científico estava em ruínas. A velha catedral, pelo contrário, irradiava as suas melhores galas, como na sua brilhante época medieval. A música combinava nela com a harmonia das linhas arquitetônicas, com as belas palavras dos oradores, com o magnífico esplendor litúrgico que num dia de Natal, anos atrás, emocionara o grande poeta Claudel, até levá-lo à conversão.
A história daquele templo esquecido está aparentada com a da Ilustração, que no seu tempo se ergueu com o sonho de “despojar o homem dos grilhões irracionais das crenças e conhecimentos supersticiosos baseados na autoridade e nos costumes”. O pensamento ilustrado da Enciclopédia considerava os conhecimentos religiosos como “simples e ingênuas explicações sobre a vida dadas pelo homem não-científico”. Na sua aversão à fé, uma multidão de pensadores deleitava-se em atribuir a origem mais baixa possível ao sentimento religioso. Concebiam os nossos antepassados como “seres perpetuamente atemorizados, empenhados em conjurar as forças hostis do céu e da terra mediante práticas irracionais”. Viam a Deus como um simples “produto do medo das civilizações primitivas, num tempo em que esses espíritos atrasados ainda acreditavam em fábulas”.
Sentiam-se chamados a “libertar toda a humanidade daquele lamentável estado de ignorância”. A fé acabaria por desaparecer à medida que a sociedade fosse amadurecendo. “A deusa Razão encostaria num canto essa ignorância, iluminaria o caminho e dirigiria com mão segura os destinos da humanidade”.
Pensavam que a tendência que levava a buscar nos deuses uma razão de existir pertencia a um estágio primitivo da vida humana, destinado a dar passagem ao pensamento filosófico e, mais adiante, a ceder o lugar ao conhecimento científico, que conferiria ao homem a primazia absoluta no Universo e o situaria na maioridade.
A teoria de Comte sobre a evolução humana através dos três estados – religiosidade, pensamento filosófico e conhecimento científico – gozou na sua época de grande aceitação e em sua honra foi erigido aquele templo dedicado à “Nova Religião da Ciência”.
– Não é curioso que a ciência adquirisse essa faceta religiosa?
Foi efetivamente um curioso fenômeno de substituição. Fascinado pela ciência, o homem elevou-a até ocupar o lugar do sagrado. Mas não era um simples conflito entre a ciência e a fé. Com efeito, entronizar uma bonita mocinha parisiense na catedral de Notre-Dame – como fizeram durante a Revolução Francesa –, dando-lhe o título de “Deusa Razão”, não parece que fizesse parte das ciências experimentais. Por trás de tudo aquilo latejava o empenho ateu de proclamar a salvação da humanidade por si mesma, e o advento de uma sociedade iluminada unicamente pela razão humana.
Passaram-se menos de dois séculos, e o estado de abandono em que se encontra hoje aquele templo laico é talvez um fiel reflexo do abandono da concepção do homem que tanta força teve na sua época. Aquela ilusão segundo a qual o advento da era científica permitiria eliminar o mal do mundo acabou por ser um doloroso engano. As suas hipóteses acabaram por estar mais impregnadas de ingenuidade do que a que eles atribuíam às épocas históricas anteriores.
A CIÊNCIA PODE EXPLICAR TUDO ?
Um olhar sobre o progresso científico com um pouco de perspectiva histórica deixa-nos espantados com a rapidez com que as máquinas são ultrapassadas e vão parar nos museus. Muitas afirmações das revistas científicas atuais provavelmente serão motivo de riso ou de assombro para as gerações futuras, talvez em menos tempo ainda.
A história da ciência adverte-nos, com teimosa insistência, sobre um fato irrefutável: poucas teorias científicas conseguem manter-se em pé, mesmo que por poucos séculos; muitas vezes, só por alguns anos; e em alguns casos, menos ainda. A maioria das afirmações da ciência vão sendo substituídas, uma atrás da outra, pouco a pouco, por outras explicações mais complexas e mais fundamentadas dessa mesma realidade. Eram hipóteses tidas como certas durante uma série de anos, ou de séculos, e que um dia se descobre que estão superadas. Umas vezes, são englobadas dentro de teorias mais completas, das quais a antiga hipótese é um corolário ou um simples caso particular. Outras, ficaram obsoletas e desapareceram por completo do âmbito científico. A postura própria da ciência experimental deve ser, portanto, extremamente cautelosa nas suas afirmações.
“Uma cilada perniciosa – escrevia John Eccles pouco depois de ter recebido o Prêmio Nobel pelas suas pesquisas em neurocirurgia – surge da pretensão de alguns cientistas, mesmo eminentes, de que a ciência não demorará a proporcionar uma explicação completa de todos os fenômenos do mundo natural e de todas as nossas experiências subjetivas. É uma pretensão extravagante e falsa, que foi qualificada ironicamente por Popper2 como «materialismo promissório».
“É importante reconhecer que, mesmo que um cientista possa manifestar essa pretensão, não se comportaria como cientista, mas como um profeta mascarado de cientista. Isso seria cientificismo, não ciência, embora impressione fortemente os profanos que pensam que a ciência produz de forma incontroversa a verdade.
“O cientista não deve pensar que possui um conhecimento certo de toda a verdade. O máximo que nós, os cientistas, podemos fazer é chegar mais perto de um entendimento verdadeiro dos fenômenos naturais mediante a eliminação de erros em nossas hipóteses. É da maior importância para os cientistas que apareçam perante o público como o que realmente são: humildes buscadores da verdade”.
Em contrapartida, a imodéstia costuma caminhar a par da ignorância. A auto-suficiência com que alguns falam reflete uma atitude muito pouco científica, pois os cientistas sensatos nunca conferem a categoria de dogma às suas hipóteses. O cientificismo orgulhoso prestou sempre um péssimo serviço ao rigor da verdadeira ciência.
CIENTISTAS QUE PONTIFICAM SOBRE FILOSOFIA?
Os cientistas sensatos – além de se vigiarem a si mesmos para não se converterem em personagens dogmáticos – procuram basear sempre as suas afirmações científicas em comprovações que sigam com rigor o método científico. Cuidam, pois, de não impor como científicas afirmações que, no fundo, se apoiam propriamente em razões de ordem filosófica.
– Penso que, se são cientistas, o que dizem estará baseado no método científico, que é aquele que conhecem, não é assim?
Certamente, a maioria dos cientistas comporta-se desse modo, e com grande honestidade. Mas há alguns que são menos honestos nas suas afirmações, embora, às vezes – para desprestígio da verdadeira ciência –, sejam mais conhecidos nos meios de comunicação. São figuras que têm uma certa habilidade para meter-se furtivamente no vizinho campo da filosofia. E isso não nos deve estranhar, pois já dizia Einstein que todo o pesquisador científico é uma espécie de metafísico disfarçado, por mais positivista que se considere.
– Mas têm todo o direito do mundo de filosofar, se assim o desejam, não é?
Sem dúvida. Nem as ciências especulativas nem as experimentais entendem de exclusivismos. Estão abertas a todos. Mas em todas se deve exigir que se cumpram as regras e o método próprios da ciência em que se está trabalhando. Não é legítimo que se pretenda impor especulações filosóficas em nome do método científico.
Se alguém, como cientista experimental, faz uma afirmação científica, deve fornecer dados empíricos que avalizem essa afirmação. Se a afirmação não é experimental, mas especulativa, deve fornecer as razões necessárias de acordo com as normas de um bom trabalho filosófico. Mas não goza de nenhum privilégio nesse campo, por mais que seja um bom cientista. O que não seria lícito é que fizesse conjecturas derivadas da razão e as apresentasse como demonstradas experimentalmente. E isso é o que fazem alguns, que, dando um pulo sigiloso, se metem de roldão em campo alheio, e falam dali querendo fazer-nos ver que falam de outro lugar.
– Quer dizer, é como um pretexto para fugir ao método científico.
Exato. E não é que o façam todos nem continuamente. Fazem-no apenas alguns e em algumas ocasiões, e, às vezes, sem que eles mesmos o percebam. O problema é que costumam mover-se aos tropeções no campo da filosofia e passeiam por ela como um rinoceronte numa loja de porcelanas, fazendo conjecturas filosóficas bastante curiosas.
– De qualquer maneira, também não é mau fazer conjecturas de vez em quando. Não havemos de estar sempre limitados ao estritamente demonstrado.
Com certeza. Mas então é preciso distinguir bem entre as conjecturas e as afirmações da ciência. Assim como, por exemplo, por um princípio ético elementar os profissionais dos meios de comunicação devem distinguir o que é propriamente a notícia do que é a sua opinião sobre essa notícia, os cientistas têm o dever de fazer também essa distinção entre o que comprovaram cientificamente e o que é mera especulação pessoal.
DEMONSTRAR QUE DEUS NÃO EXISTE?
Narrando a história da sua conversão, o professor de Oxford C.S. Lewis explicava como foi que percebeu, num momento concreto da sua vida, que o seu racionalismo ateu da juventude se baseava inevitavelmente no que ele considerava como as grandes descobertas das ciências. E o que os cientistas apresentavam como certo, ele o assumia sem conceder o menor espaço à dúvida.
Pouco a pouco, à medida que ia amadurecendo o seu pensamento, espatifava-se, uma e outra vez, contra um escolho que não conseguia superar. Ele não era cientista. Tinha, portanto, que aceitar essas descobertas por confiança, por autoridade…, como se fossem, em última análise, dogmas de fé científicos. E isso ia frontalmente contra o seu racionalismo.
Relatava-o passados anos, espantando-se com a ingenuidade da sua juventude. Sem quase saber por quê, vira-se envolvido numa credulidade que agora lhe parecia humilhante. Sempre tinha acreditado, às cegas, em praticamente tudo o que aparecesse escrito em letra impressa e assinado por um cientista. “Na época, ainda não fazia a menor ideia – dizia – da quantidade de tolices que existem no mundo escritas e impressas”. Agora parecia-lhe que essa candura juvenil o tinha arrastado a uma inocente aceitação rendida de um dogmatismo mais forte que aquele do qual estava fugindo. Os cientistas, aos olhos do grande público, têm em seu favor uma grande vantagem: o enorme complexo de inferioridade que o homem comum sente perante a ciência.
– E se a ciência demonstrar um dia que Deus não existe? Porque muita gente pensa que chegará um dia em que a ciência conseguirá prescindir do que chamam a hipótese de Deus, forjada nos obscuros séculos da ignorância…
É um velho temor que surge, às vezes, mesmo entre os que creem, excitado pela força divulgadora do ateísmo científico. No entanto, o temor do crente perante a ciência não faz nenhum sentido. Se demonstrar com seriedade a existência de Deus pode ser uma tarefa trabalhosa para a filosofia, demonstrar a sua inexistência é para a ciência uma tarefa impossível.
O objeto da ciência é só o observável e o mensurável, e Deus não é nem uma coisa nem outra. Para demonstrar que Deus não existe, seria preciso, como vimos, que a ciência descobrisse um primeiro elemento que não tivesse causa, que existisse por si mesmo, e cuja presença explicasse tudo o mais sem deixar nada de fora. E se pudesse descobri-lo – o que não conseguirá, porque está fora do seu âmbito de conhecimento –, seria precisamente isso que nós chamamos Deus.
Robert Jastrow, diretor do Goddard Institute of Space Studies, da NASA, e grande conhecedor dos últimos avanços científicos relacionados com a origem do Universo, dizia: “Para o cientista que passou a vida acreditando no ilimitado poder da razão, a história da ciência desemboca num pesadelo. Escalou a montanha da ignorância, e está a ponto de conquistar o cume mais alto. E quando está subindo o último penhasco, saem para lhe dar as boas-vindas um monte de teólogos que estavam sentados lá em cima faz muitos séculos”.
CIENTISTAS QUE CREEM ?
– Alguns estão persuadidos de que a ciência e a fé são incompatíveis. Dizem, como Laplace, que “Deus é uma hipótese da qual não têm nenhuma necessidade”. E afirmam que são precisamente os cientistas quem costuma negar que se possa conhecer a Deus.
É verdade que alguns cientistas pensam assim. No entanto, muitíssimos outros – de indubitável e reconhecido prestígio – não hesitam em afirmar que creem, e não lhes parece que a fé seja de maneira nenhuma um empecilho para as suas pesquisas; pelo contrário, afirmam que a verdadeira ciência, quanto mais progride, mais descobre a Deus. Os conflitos entre a fé e a razão foram sempre causados pela ignorância dos defensores de um ou de outro lado.
O próprio Albert Einstein, por exemplo, autor da teoria da relatividade, afirmava que “a religião sem a ciência estaria cega, e a ciência sem a religião estaria coxa”.
Newton afirmava que “há um ser inteligente e poderoso… que governa todas as coisas não como a alma do mundo, mas como Senhor do Universo, e, por causa do seu domínio, é chamado Senhor Deus, Pantocrator”.
O famoso prêmio Nobel alemão Werner K. Heisenberg, um dos principais criadores da Mecânica Quântica e formulador do conhecido Princípio da Indeterminação que leva o seu nome, ao passar por Madrid em 1969 afirmava: “Creio que Deus existe e que dEle procede tudo. A ordem e a harmonia das partículas atômicas têm que ter sido impostas por alguém”.
Max Planck, outro alemão ganhador do prêmio Nobel, que formulou a teoria dos quanta, é ainda mais explícito: “Em todos os lugares e por mais longe que dirijamos o nosso olhar, não somente não encontramos nenhuma contradição entre a religião e a ciência, mas precisamente um pleno acordo nos pontos decisivos”.
Von Braun, que conseguiu levar o primeiro homem à Lua, assegurava que “quanto mais compreendemos a complexidade da estrutura atômica, a natureza da vida ou a estrutura das galáxias, mais encontramos novas razões para nos enchermos de admiração perante os esplendores da Criação divina”.
O físico britânico Paul Davies assegura que a ciência não pode responder às questões últimas, e que tem de existir algum plano superior capaz de explicar a vida humana. Para Davies, “é totalmente inviável atribuir a existência do homem ao simples jogo acidental de forças cegas da natureza: a espantosa racionalidade da natureza – com um grau verdadeiramente incrível de organização em diferentes níveis que se entrecruzam e complementam – não pode ser fruto de simples acasos”.
Alexis Carrel, prêmio Nobel de Medicina, inicialmente um positivista incrédulo, mas convertido mais tarde ao catolicismo, foi testemunha direta em Lourdes de uma cura instantânea e inexplicável, e dizia: “Pouco espírito de observação e muitas teorias levam ao erro. Muita observação e poucas teorias levam à verdade”.
A multiplicação deste tipo de testemunhos tão qualificados acabou por provocar uma reviravolta contra essa mentalidade de agnosticismo cientificista. É como se os agnósticos tivessem subestimado o poder da inteligência humana para chegar a Deus através da ciência3. Um editorial da revista Time comentava com espanto essa mudança dentro do mundo científico: “Através de uma silenciosa revolução no pensamento e na argumentação – uma revolução impensável faz vinte anos –, é como se Deus estivesse preparando a sua volta”.
A RAZÃO PRECISA DA FÉ?
O combate que o homem trava contra o mal excede infinitamente os meios da razão e da ciência. É o que demonstram fatos tão atuais como o racismo, a droga ou o álcool. Ou como todos esses terríveis crimes cometidos por totalitarismos ateus sistemáticos e pretensamente científicos ao longo do século XX: desde o genocídio nazista de Hitler até o de Pol Pot no Camboja, passando pelos do leninismo, do stalinismo ou do maoísmo.
O pior é que a maior parte desses crimes em massa foram cometidos em nome de teorias que, na sua época, receberam o aplauso de milhões de pessoas. Foram autênticos infernos fabricados por homens que procuravam um mundo perfeito que se bastasse a si mesmo e já não tivesse necessidade de Deus.
E assim como, lendo Lênin, se podia notar que os direitos do indivíduo não iam ser respeitados num sistema comunista, do mesmo modo, estudando as premissas da Ilustração, viu-se claramente que a Modernidade não atenderia às necessidades globais do ser humano. Não basta a razão para que uma sociedade seja justa, solidária e equilibrada. Para que haja equilíbrio na pessoa e na sociedade, é preciso atender, juntamente com a razão, à vontade e à sensibilidade. A pessoa e a sociedade devem ter por objetivo procurar o bem, a verdade e a beleza; e isso significa falar de vontade, inteligência e sentimentos; e, por sua vez, de ética, de ciência e de arte. Quando se idolatra um método da inteligência, como é a razão, sem elevar à sua altura a ética e a estética, desequilibram-se o indivíduo e a sociedade. Esse foi o fracasso da Ilustração.
Fracassou por ter pensado que da razão deriva automaticamente a ética, coisa que se demonstrou falsa ao ser confrontada com a realidade. A razão não pode ser salva pela razão. Isso seria ilusório. Esses crimes demonstraram o que o homem pode chegar a fazer. E vimos como a razão não os impediu.
Os ilustrados pensavam que, mostrando ao homem o que é racional, este o adotaria, e a razão seria suficiente para organizar a sociedade. Mas não foi assim. Não basta proclamar o que é racional para que os homens o pratiquem.
O comportamento humano está cheio de sombras e de matizes alheios à razão, que desembestam cada qual por sua conta movendo as molas da vontade e do coração. Reconhecer os perigos que a razão encerra – afirma Jean-Marie Lustiger – é salvar a sua honra. Conceber a razão como a grande soberana, independente do bem que o homem deve procurar, é mais ou menos como pôr-se nas mãos de um computador: é um instrumento muito capaz, processa grande quantidade de dados que toma do exterior, todo o seu desenvolvimento é perfeitamente lógico, mas alguém tem de garantir que está bem programado. A verdadeira fé é um guia insubstituível, pois a razão pode extraviar-se.
Não quero, com isto, menosprezar a razão, antes pelo contrário. A razão é uma das mais nobres capacidades que distinguem a espécie humana, e alegra-nos ver os seus triunfos, bem como as conquistas da ciência e a sua luta por construir um mundo melhor. Mas convém nunca esquecer a limitação humana, e igualmente a ordem natural imposta por Deus, que permite ao homem preservar a sua dignidade e evitar muitos erros.
A história está cheia de cadáveres ideológicos, e ninguém acha estranho encontrá-los perfeitamente alinhados quando olha para trás com a disposição de aprender. E, entre eles, espalhados ao longo dos séculos, pode-se ver toda uma legião de profetas que foram anunciando – sobretudo nos últimos duzentos anos – o próximo e definitivo desaparecimento da religião e da Igreja.
No entanto, a história mostra que são precisamente aqueles que, com tanta paixão, lançam essas condenações e essas profecias os que desaparecem uns após outros, enquanto a Igreja continua adiante depois de dois mil anos, e a religiosidade continua a ser uma constante em todas as civilizações de todos os tempos.
A Igreja, que presenciou catástrofes que varreram impérios inteiros, testemunha pela sua mera subsistência a força que palpita nela. “Os povos passam – observava Napoleão –, os tronos e as dinastias desmoronam-se, mas a Igreja permanece”. É uma realidade que leva a pensar que o fato religioso faz parte da natureza do homem, e que a Igreja está animada de um espírito que não é de origem humana.
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